segunda-feira, 13 de junho de 2011

Capítulo 2 - Rotina





CAPÍTULO 2
Rotina

O despertador tocou às sete da manhã e eu estava na sala, exatamente no mesmo ponto de observação das fotos na parede, tentando encontrar-me naqueles cliques antigos.
 - É por isso que odeio essas modernidades tecnológicas. Quando a câmera era analógica, íamos curiosamente à revelação e tínhamos álbuns, pôsters, quadros. Hoje, nada disso faz parte desta sociedade digital e tudo de resume a arquivos no computador. Há anos que não sei o que é revelar uma foto! É, querida Ana, você se abandonou por completo. E anda logo, porque senão perde o horário.
Chego no meu armário, aquela mesmice. Escolho a velha companheira calça jeans e uma blusa que aparentemente está limpa, num tom azul marinho, sem detalhes. Sapato baixo completa o visual previsível. Domo meu cabelo mais uma vez, dois goles de café, bolsa, chaves, e olho o celular recarregando.
- Não me fará falta hoje, deixa ele aí! Ninguém me liga há semanas.
Na saída, dou uma olhada no conjunto no espelhinho próximo à porta. Nem um batom ajudaria.
O trajeto que faço todas as manhãs é iniciado com uma caminhada de poucos metros, até minha garagem, que fica no outro bloco do meu prédio. Torcendo para que o vizinho alegrinho já tenha saído antes, para liberar minha garagem, constato que o insuportável cidadão também se aproxima, com o mesmo objetivo matinal. E lá vem ele de novo, com aquele ‘bom dia’ feliz.
- Bom dia, D. Ana, tudo bem?
- Sim.
- Está um lindo dia hoje, não acha? Eu adoro estas manhãs de outono. A senhora sabe que estou saindo para buscar minha filha no aeroporto? Ela chega com minha netinha, que completou três meses no último sábado e...
- Aham...
- Não sabia que tinha contado para a senhora. Desculpe, acabo repetindo essa história para todo mundo que encontro, mas é que faz tanto tempo que não vejo minha Andréa, e agora a presença dela irá preencher ainda mais a minha vida. Ela colocou o nome na minha netinha de ...
- Vitória, Sr. Arnaldo, eu já sei.
- Isso mesmo, Vitória! E sabe por quê?
- Estou atrasada, tenha um bom dia.
- Ah sim, depois conversamos melhor. Apareça lá em casa hoje à noite para ver a Vitória. Andréa ficará contente, podemos pedir uma pizza ou quem sabe preparamos algo na cozinha...
- Não poderei, já tenho compromisso. O senhor pode tirar o carro?
- Claro, claro, fica para uma próxima oportunidade. Ela ficará aqui até a semana que vem...
- O carro, Sr. Arnaldo, o carro...
Ah, velho chato, se empolga com a perspectiva de ter em casa um bebê chorão e uma filha problemática que só aparece para sugar a sua pensão gorda.
Imagina que hilário eu, sentadinha na sala de estar chiquérrima dele, decorada pelos melhores profissionais da cidade, bebendo um martini, conversando sobre a assadura recente da Vitória enquanto ela chora de fome, de sede ou por qualquer outro motivo ainda não descoberto.
- Definitivamente, não! Prefiro minha companheira insônia, pelo menos é silenciosa.
O ponteiro da gasolina acende a luz amarela. Já é hora de abastecer de novo. E tem que ser rápido, odeio essa luz acesa, é aflitivo...
Não ligo o rádio. Prefiro o silêncio. Acredito até que esta porcaria tenha estragado pela falta de uso. Também não sei por que motivo eu o instalei no carro. Certamente foi ideia do vendedor da concessionária e eu caí como uma pata choca.
Que capacidade é essa que eu tenho de ser enganada, ludibriada e levada na conversa? Se existisse um curso de pós-graduação em ‘como ser passada para trás’, eu seria a melhor professora.
E ri de novo. – Taí, vai pro caderninho!
Não sei se é minha timidez, a baixa auto estima ou qualquer outra coisa do tipo que me impeça de parar e dizer... – Peraí, mas eu não concordo com isso!
É por essas e por outras que admiro a Olívia.
Como eu queria ser alguém como ela! Forte, dinâmica, respeitada, segura...
Já faz tempo que não encontro esta querida amiga. Ela me fazia bem, sempre foi assim, desde que éramos novinhas. As melhores ideias sempre eram dela, eu sempre estava tranquila a seu lado, nada de ruim me acontecia. Já na fase adulta, mesmo por caminhos diferentes, ela sempre dava um jeito de estar próxima a mim. Sempre telefonava, escrevia, lembrava das datas...
Por onde andaria Olívia? Seria muito bom reencontrá-la novamente...
O próximo posto fica na próxima esquina. Na carteira, só cartão de débito. Vou arriscar. Na última vez que abasteci, o sistema operacional da droga do cartão estava fora do ar e fiquei mais de trinta minutos tendo que escutar conversinha de frentista.
- Estas modernidades idiotas!
- Olá bom, dia, vamos completar o tanque?
- R$ 30,00 de gasolina comum.
- Sim, gostaria de uma sacolinha para lixo?
- R$ 30,00 de gasolina comum.
- Certo, verificamos água e óleo?
- R$ 30,00 de gasolina comum.
- Posso limpar os vidros?
- R$ 30,00 de gasolina comum.
- Gostaria de calibrar os pneus?
- R$ 30,00 de gasolina comum.
- (...)

Chego no trabalho, pilhas de papel me esperam. E não é por ocupar cargo muito relevante, é por pura preguiça mesmo. Há meses que não me dedico, não faz diferença nenhuma, nem para mim, nem para ninguém.
- Daqui a pouco, na mesa ao lado, chega a Tânia, quem sabe ela me alegra um pouco.
- Oi Ana, bom dia, tudo bom?
- Tudo indo...
- Pensei muito em você ontem. Aquela nossa conversa me fez refletir muito, sabia?
- Que conversa?
- Ora, Ana, conversamos tanto sobre como os sentimentos influenciam nossas vidas, como alteramos nossas perspectivas com o pensamento, as atitudes... você não lembra?
- Ah, sim, claro, é verdade.
- Nossa Ana, você tem tanto conhecimento, conversa profundamente sobre tantos assuntos, principalmente sobre generosidade, amor, caridade, compaixão e ternura. Por que não aplica isso tudo na sua vida? Você se tornou uma ranzinza insuportável ultimamente, percebeu?
- Nem é tanto assim.
- Claro que é. Olha, sou sua amiga, só quero o seu bem, por isso lhe digo isso. Aplique na sua vida tudo o que você já sabe. Fará bem. Faça só por teimosia, pelo menos, quem sabe dá algum resultado?
- É, pode ser mais barato do que terapia.
- Não é você que diz que a felicidade é apenas um ponto de vista? Você está míope, Ana, compre um óculos...
Tânia sempre teve a capacidade de me esbofetear com palavras. E, na maioria das vezes, tem razão de fazê-lo.
E sempre que isso acontece é bom. Gosto de levar os sustos que vêm dela. Verdadeiramente mexem comigo e entro num mundo paralelo, capaz de analisar-me de fora para dentro, como se observasse minha vida através do olhar de terceiros. É um exercício fascinante!

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