quarta-feira, 1 de junho de 2011

Capítulo 1 - Companheira insônia







CAPÍTULO 1
Companheira Insônia





Já estava passando da meia noite e, mais uma vez, a dificuldade para dormir me acompanhava. Há meses sentia aquele aperto no peito, uma angústia incontrolável, flashes e mais flashes em minha mente que impediam meu sono aparecer.

E nem adiantavam os remédios...

Uma sensação de desespero começava a tomar meu corpo logo que as doze badaladas soavam no antigo relógio de minha sala de estar.

Eu nunca consegui ter a sala de estar que desejei. Na verdade, não tive tempo nem para pensar como queria que fosse a minha sala de estar, apenas sabia que aquela que tinha não era a minha favorita. Era feia, sombria, móveis isolados aqui e ali perseguiam o ambiente e nada era muito familiar, nada conseguia traduzir a minha personalidade, se é que eu a tinha. Minhas tentativas vãs de pregar fotos na parede, fazer texturização na pintura e de comprar objetos esquisitos em viagens não ajudaram e acabei por desistir da sala.

Tenho medo de errar, de ousar, de arriscar. Sempre fui assim e com a decoração de minha casa, a coisa apenas se repetiu. Falta-me estilo também... na verdade, nunca soube ao certo qual linha seguir e essa incerteza traduziu-se em pura desorganização. Hoje, incomodo-me mais com isso, preciso encontrar urgentemente um estilo, mas por enquanto, sinto-me fraca.

Continuo a odiar aquele relógio, antigo, herança de uma tia solteirona. Ela escreveu em seu codicilo que eu seria responsável pelo relógio da família e lá foi ele parar na minha parede. Grande coisa...

Minha prima teve mais sorte. O tal codicilo da tia Inácia garantiu-lhe uma coleção de sapatos invejável e algumas jóias interessantes. Quem mandou nascer com pé grande e nunca ter furado a orelha? Bem feito. Só sobrou o relógio para me assombrar nas noites de insônia com suas badaladas insuportáveis. Bem feito, de novo.

Uma manhã seguinte estava à minha espera, logo ali. Mais um dia em que as reclamações estariam dinamitando meu pensamento, que o meu café seria amargo e solitário, que os ‘bom dias’ no trabalho soariam falsos.

Argh, meu trabalho, capítulo à parte nesta minha infeliz trajetória. Estudei o suficiente para garantir uma vida confortável e seria injusto reclamar do quanto ganho quando há tantos que lutam para viver com dez por cento do meu salário. Mas o que me irrita mesmo é o sacrifício diário que tenho que fazer para ter acesso, ao final do mês, ao esperado contra cheque. Ir ao trabalho, ficar lá carimbando e encaminhando papéis, analisando projetos, conversando com pessoas, iludindo tantas outras, tudo parece muito fantasioso e irreal. Não construo nada, não altero nada. Apenas sou um agente condutor de coisa nenhuma e isso é frustrante. Em meus projetos, nem nos piores pesadelos imaginei que chegaria neste resultado quando levantei o canudo como bacharel em Serviço Social. Deveria ter estudado outra coisa. Quem sabe, algum dia, encaro outra faculdade e mudo a perspectiva desta minha vida chatérrima.

Ah, deixa pra lá. Reconheço que o comodismo é bem conveniente. Melhor achar que, com sorte, ao final da jornada, não terei dor de cabeça e, na volta para casa, o trânsito não engarrafe também minha paciência.

Suspiro fundo. As fotos penduradas na parede do meu quarto traziam uma menina encantadora, um sorriso que se perdeu não sei bem onde, uma adolescente apaixonada pela vida e até uma mulher adulta que vivia rodeada de amigos e da família.

Humf, família... que desgraça mais desnecessária! Meus pais separaram-se pouco depois de eu completar vinte anos. Já morava em outra cidade e desde a época que saí de casa para estudar, a distância não permitia grandes encontros e, na verdade, nem fazia muita questão. Não tinha muita paciência para aguentar os choros de minha mãe pela traição sofrida depois dos sessenta e nem as justificativas vazias de meu pai, mais interessado em curtir sua nova fase juvenil com a namoradinha trinta anos mais jovem. Não me permitiram ter irmãos, uma decisão que me cortou a possibilidade de viver a experiência do trato fraterno. Acho que sinto raiva até hoje.

Sobraram-me uns poucos primos e os colegas de escola, todos insuportáveis. De quebra, ainda me registraram com um nome horrendo: Analuz. Que ideia passa na cabeça de alguém para botar um nome desses num pobre bebê indefeso? E ainda por cima, sempre era das primeiras na chamada da escola. E tinha que suportar as risadinhas e os comentários infames... onde é que apaga a luz? Ah, não, é Analuz! Uma frase tola, sem sentido, que só ganhou força exatamente porque eu a odiava.

Adotei o codinome Ana. Pouquíssimas pessoas sabiam que meu verdadeiro nome carregava um complemento ridículo e desprezível. E quem sabia, não ousava em repeti-lo na minha frente. Quando eu tiver um filho, escolherei o nome mais lindo do mundo.

Filhos... ainda não havia sido agraciada com essa chance. Minha esperança era meu óvulo congelado. Isso me custava mais cinco mil reais por ano em manutenção e tudo para manter geladinho meu bebê, à espera de que eu providenciasse, em definitivo, o conserto de minha cabeça. Não permitiria que ele viesse ao mundo antes disso. E o tempo passava e só o que eu conseguia era mais desconserto mental.

Sinceramente, já com quarenta e quatro anos, o aspecto de sessenta e dois estava sinalizando que eu parecesse uma mãe-avó e este era outro projeto que havia abandonado, pois a vergonha de embalar uma criança fruto de um pai doador de esperma, por pura incapacidade de encontrar um companheiro, travava-me por completo.

Também, quem iria se interessar por alguém como eu? A beleza, que já era pouca, foi definitivamente apagada pelo tempo. A conversa é amarga e o resumo do meu mundo não tem nada de interessante. Há uns cinco anos, pelo menos, meu guarda roupa não era contemplado com uma peça nova e, naturalmente, estava fora de moda. Não gosto de ir ao salão de beleza, meus dentes estão escurecidos, então nem adianta esboçar um sorriso para dar uma melhoradinha no visual. O sedentarismo faz parte do meu cotidiano há muitos anos, e esta forma preguiçosa de viver trouxe como consequência minhas pernas flácidas, queixo duplo e sobras estufadas na barriga.

De tudo, porém, o que mais odeio em mim é o cabelo. E não era somente pelo fato dele ser crespo ou duro, mas sim por nunca ter conseguido encontrar um equilíbrio, ele nunca quis ser meu parceiro, vive brigando comigo, testando minha paciência ... mais um projeto abandonado.

Acumulei grandes abandonos, e continuava colecionando um tantão deles. Devia fazer um álbum de figurinhas e nele colar meus fracassos, seria divertido e até terapêutico. Vou lá anotar no meu caderninho de projetos. O mês seguinte seria dedicado ao meu álbum de fracassos, estava decidido.

Esta foi uma sugestão do meu terapeuta. Mandou-me anotar todos os pensamentos que, por qualquer motivo, trouxesse uma graça, um riso, um divertimento, algo que gostaria de fazer, sentir ou viver. Ao escrever o item ‘fazer um álbum de figurinhas sobre meus fracassos’, dei uma espiadela curiosa nos projetos antigos.

Lá estavam anotados: dedicar um fim de semana para fazer uma horta hidropônica; pular de pára-quedas; viajar de mochila, sem destino e sem programação; aprender violão; pintar um quadro; arrumar o vazamento da pia... - Nossa, devia estar péssima neste dia. Vamos apagar isto aqui do caderno. Como é que arrumar o vazamento da pia traz graça e riso?

Bom, um álbum de figurinhas colecionando os fracassos da minha vida também não se traduz em grande sugestão de divertimento. Ah, deixa os dois aí, pelo menos, toda vez que recorrer ao meu caderninho, eles estarão lá, olhando para mim, aguardando meu sorriso amarelado e infeliz. Já vale a perspectiva. Afinal, seria ótimo não ouvir os pingos d’água intermitentes e folhear os fracassos de minha vida só para aprender a não repeti-los.

Um caderninho lotado de projetos não realizados justifica o pagamento mensal do terapeuta. Ele era casado, mas um colírio para meus olhos. Adorava visitá-lo. Minhas noites ficavam mais interessantes depois que a sessão com ele terminava... Pelo menos, meus pensamentos fervilhavam e conseguia lembrar que era uma mulher, enfim. Tinha desejos, imaginava, fantasiava e a sensação perdurava por alguns dias, até que esfriava de novo. Outra sessão dessas, só daqui a três meses. Acredito que ele também tenha desistido de me curar.

Resolvi andar pela sala e mais uma vez pensar na vida que estava passando em minha frente, sem que quisesse acompanhá-la. Quarenta e quatro anos já haviam passado e tudo o que eu havia conquistado eram dois romances frustrados, um apartamento pequeno e mal decorado, um carro meia boca, uma gastrite crônica, um trabalho chato, um cabelo que me odiava e a mais nova companheira... a insônia.

Por certo, o problema estava em mim mesma, e não no mundo torto que me cercava. E lá vinham os pensamentos suicidas de novo... já eram rotina e eu me sentia patética. Chorar ficava meio sem sentido e a sensação que tinha era que o estoque de lágrimas do meu corpo já havia acabado há uns três anos, pelo menos, desde que me abandonei de vez. Estava seca, literalmente.

Olhei pela janela. Não queria morar numa selva de pedra e, de repente, estava numa cidade populosa, grande, cheia de gente e me sentido sozinha. Baita contrassenso. Em muitas daquelas janelinhas iluminadas, imaginei que histórias parecidas com a minha também existiam. Do contrário, quem, às três horas da madrugada, perambulava pela casa senão por um vazio semelhante ao meu?

Lembrei de um filme que assisti certa vez. Eram personagens ligados uns aos outros apenas por uma passagem tênue. Enquanto a história resumia a vida de uma pessoa, logo outra cruzava com ela na rua e este novo transeunte passava a ser o personagem principal da trama. Este, por sua vez, comprava algo numa lojinha distante de seu bairro e, mais uma vez, uma reviravolta na história, que contava com o dono do mercado como protagonista.

Permiti-me entrar na mesma dinâmica. Imaginei que o vizinho do sexto andar, andando de pantufas com uma caneca de chá na mão e um bolo de papel em outra, no alto dos seus aparentes setenta e cinco anos, comemorava um diagnóstico médico favorável, tanto que não conseguia dormir àquela hora da madrugada. Estava feliz, sorridente, eufórico. A médica dele, por sua vez, morava no terceiro andar do prédio ao lado, e em razão de sua gatinha de estimação já idosa, que demandava cuidados noturnos, estava impedida de gozar uma noite de sono tranquila... mas ela nem dava importância. Afinal, seu novo namorado virtual estava à sua espera no computador, do outro lado do mundo, e era hora do encontro. Mas o modem não funcionou e lá foi ela para o telefone reclamar o conserto mais do que urgente. Do outro lado da linha, o atendente mantinha, a duras penas, o bom humor, tentando agradar a cliente nervosa, adivinhando o que acontecera com o tal aparelho para logo reestabelecer-lhe o funcionamento.

Comecei a rir. Engraçado que até os meus pensamentos livres estavam igualmente depressivos. Até havia começado bem... afinal o senhor de pantufas estava comemorando o diagnóstico médico favorável, mas o atendente já não refletia o mesmo sentimento positivo, e lutava contra seu mal humor.

Ri muito, uma gargalhada daquelas cujo som até havia esquecido. Bom sinal, ainda há esperança para mim.






0 comentários: